Só Eu

Senão fosse a manutenção da vida tão dependente da moeda, e eu fosse, por sorte do destino a única herdeira de uma tia só, eu seria só eu, seja isso o que for, sem qualquer pretensão de produtividade. Abraçava o niilismo e deixava-me mergulhar na hecatombe da crise existencial, como quem mergulha numa piscina de bolas.
Esse doce não fazer nada que a sociedade nos faz saber amargo, mas que é deliciosamente são, depois de transpostas as amarras férreas do destino circular.
Estes dois últimos anos de pandemónio lixaram-nos. O imprevisível tornou-se tão previsível, que para ter segurança basta andar sempre inseguro.
Que nada é certo nós já estávamos a interiorizar, mas a lógica espaço temporal globalizou-se. Todos lixados ao mesmo tempo! É coisa épica. Nem a deus ocorreria que não fosse para efeitos de juízo final.
Tirei gozo que chegue destes tempos, mas reconheço-lhe a sombra de miséria, o semblante de abandono, a dependência de um sistema arcaico, o encaixotamento, as viagens que foram tão adiadas como os sonhos e o futuro cheio de promessas sempre ameaçado de novos infortúnios. E a demência? Essa que faz voo rasante sobre todos os lares e que toda a gente enxota como se fosse mosquito.
Agora digam-me se isto não converte qualquer cidadão razoável num potencial procrastinador?
Gritam os alarves: É o fim dos tempos!
Bramem os optimistas: – É uma nova era que se abre.
Condenam os conformados: – Até isto há de passar.
Eu cá se fosse rica, procrastinava até à próxima vaca louca, macaco africano ou variante incógnita. Já sabemos que vamos todos desta, para algures, o que nunca foi tão provável é que fosse na travessia de uma rua com um piano na cabeça.
E sabei vossas excelências, que mesmo quem não faz nada, corre risco.
E já diz a minha prima viciada, há uns riscos melhores que os outros.