Hoje recortámos flores

Foi o que a ouvi a Luísa dizer na terceira noite no centro de dia.
Estava à espera que estivesse apreensiva, zangada, que me dissesse que aquele é um lugar de gente esquecida. Que não gosta dos recortes coloridos nas paredes e dos arranjos plásticas dos centros de mesa. Que abomina a sala da televisão onde se apinham velhos em dominó e que quase ninguém diz frase inteira, com interesse inteiro, para gente que é tratada pela metade.
Estava confiante que quereria ensaiar comigo um plano de fuga, um resgate nocturno, que já tivesse sinalizado o algeroz e monitorizado as entradas e saídas dos auxiliares.

Mas ela estava feliz.
Queria mostrar-me as flores de papel crepom. A seguir viriam os diminutivos: as papinhas ,as palmilnhas e as colheres de sopinha. Teria ela esquecida do quanto desprezava a condescendência?
O que abominava conversas mundanas sobre experiências primárias?
Imaginei-me ali velhinha, entregue ao cuidado de auxiliares da pre primária, a chamarem-me Isabelinha enquanto me atam o babetezinho e me aproximam com cuidado a cadeira da mesinha. E eu, com o mesmo sorriso feliz, com as mãos inundadas de papel crepom.
Quis apresentar as amigas, enfileiradas e curvas, como excursionistas entusiasmadas de um campo de férias. Inventei uma desculpa e sai.
Demorei semanas a sair do centro de dia, das tesouras de plástico e das flores de papel. Talvez haja na minha angústia o medo do retorno à infância onde nunca soube ser muito feliz. Talvez seja isso que me dói na pequenez do diminutivo. Tornar mais pequenino até não haver nada para apagar. Ensaiar o enterro infantilizando as palavras que respeito tanto.
Haverá um tempo certo para cada Isabelinha? Estará o segredo da paz interior naquele pedaço de papel recortado em forma de flor que nos vem pousar nas mãos outra vez?
O que seria findar o mundo num antónimo da diminuição, ampliados pelo ladrar de tantos “ãos”?

Ainda não voltei ao centro de dia. Mas não há manhã que não acorde a ouvir a Luísa dizer: – Isabelinha, hoje recortámos flores.