Ao verso e à chapada
Antes de gravar uma entrevista para um podcast, perguntei à minha mãe, e pedi-lhe que respondesse sem a amnistia carinhosa do tempo, como é que era eu em criança.
“De bebé inquieta à mais insuportável das adolescentes. “
Quem pede sem amparo, recebe sem recado.
Ao que parece, gostava de escrever pequenos papéis que colocava estrategicamente debaixo das portas, para que a minha mãe tropeçasse nos meus recados de escárnio e mal dizer.
Alguns eram tão atrevidos que para evitar ficar de castigo até aos 25 escrevia em poesia.
O discurso oral era muito arriscado, numa geração de famílias numerosas corridas à lambada de uma mão com anéis.
Engraçado, que não tenho qualquer memória da dor física, para efeitos póstumos bastam-me os restos de uma miúda pespineta com um ego quebrado.
Continuo a escrever os meus recados que guardo em ficheiros com nomes de receitas. Quando estou lixada da vida atiro-lhes com um Arial 56 e deixo-me ficar consolada, a ver as palavras ganharem a forma de monstros, a vomitarem-se umas atrás das outras, com vírgulas amarradas como parasitas sem travessões para não oxigenar e a gritarem umas dezenas de filhos da puta.
Quando ao acaso, também eu tropeço nessa poesia, acho que intuo a mesma ternura, com que a minha mãe recolhia nas mãos os meus recados.
O que não puderes dizer, pensa, o que não souberes falar, escreve.
Tenho demorado para olé perguntar o que pensa hoje de mim?