Nunca Quis

Nunca quis ser empecilho. Talvez o tenha sentido demais, quando ainda era menos que meio metro de gente, e por isso, tema tanto, incomodar os outros com o uso excessivo da minha dota ignorância.
Mas também nunca quis ser estúpida, tendo a minha classificação evoluído para a conclusão de que um estupido é somente quem não faz o uso certo das oportunidades, sejam elas de vida, de conhecimento ou de diletância assumida.
Também nunca quis ser transparente, tendo o mesmo conceito evoluído da definição de discreto para a de invisível, porque sempre vivi convencida de que a minha vida não podia ser o sopro de uma aleatoriedade absurda. E por isso morrerei a tentar encontrar-me e a fazer-me ver.
Também não quis ser mãe e só me dei conta da lucidez do sucedido quando fui sacudida pela súbita necessidade da minha presença, requisitada ao prazer lascivo do meu egoísmo.
Também nunca quis ser de alguém, porque me dava a conveniência de um motivo, para me ausentar de mim. E intuí na minha juventude que a dependência era uma forma de perdição.
Também nunca quis ser inútil porque os verbos são a minha forma gramatical preferida. Mas sempre soube que a quimera de uma vida é uma luta absurda contra a inutilidade, a angústia do sentido, o compromisso com a vontade e o desespero por um adjectivo.
Nunca soube o que queria ser, ingénua ao ponto de só querer ser feliz, como se isso não dependesse do discernimento das minhas escolhas limitadas e do horizonte que me era oferecido, somado à hipotética vontade do que ainda vai ser encontrado.
Nunca quis…hoje em dia, quero cada vez menos de cada coisa que já foi ambição. Continuo a querer amor, soba forma de uma conversa demorada que me enche de novas questões, uma fome que ultrapassa a geografia dos alimentos do corpo e um silêncio feito do ruído do meu pensamento em loop e do vento a fazer comichão às plantas.
E continuo muito a querer morrer num verbo esvaziado de estupidez.