Não devia ser eu
Nesta fotografia devia estar eu, o Filipe e um checo a passear na floresta.
E não era uma anedota, era uma história honesta de acolhimento e partilha.
Conhecemos este nosso amigo discreto no curso de permacultura e convidamo-lo a vir passar uns dias cá a casa em Lisboa, quando terminasse a sua jornada no sul.
Dos 21 ele era o mais discreto, quando decidiu falar, revelou-se uma pessoa segura, com um raciocínio fabuloso e uma capacidade de síntese excecionais. Falou-nos de mercados financeiros, de bitcoins, de inflação e especulação, deu nos a conhecer a sua aventura pelos meandros da alta finança europeia até ter decidido vender tudo, deixar tudo, embalar o que precisava numa mochila e partir pelo mundo à procura de um sentido de vida.
A mim, dá me logo uma inveja boa. Por momentos, olho aquele corpo alto e franzino, com umas grandes sirenes azuis e penso que podia ser a ilustração de um dos filhos da liberdade, se ela não tivesse actualmente, com tanta dificuldade em reproduzir-se.
E não há nada de hippie diletante neste rapaz, há uma estrutura sólida dotada de uma consciência activa e de um sentido de ser. Queria conhecer mais gente assim. É preciso. São os sidhartas contemporâneos que preparam o seu caminho “into the wild” da mesma forma que nós não nos preparamos nunca, para o nível de estupidificação das nossas vidas. Tão comprometidos que estamos a fazer cumprir o protocolo:
Hoje de manhã fomos andar umas horas por Monsanto, enquanto conversávamos sobre o sistema e a vida, e a vida no sistema.
Está tudo bem na adequação a uma sociedade regulamentada essencialmente pela lei da oferta e da procura, o que não está bem é que nos deixemos de procurar, enquanto procuramos nas coisas que adquirimos um pózinho corrector para os nossos vazios.
Ainda somos estranhos uns para os outros, ainda não conhecemos bem o nosso amigo checo, mas albergar um pedacinho humano desta liberdade em nossa casa, é como desenhar janelas grandes numa parede de betão.
Se ele não fosse tímido, apresentava-vos, mas o essencial é sempre invisível aos olhos. E o resto está dito.