Livrem-nos

Quando pego num livro, sinto-me momentaneamente responsável pela devolução de batimento cardíaco.

Mesmo numa trama complexa, sinto o ânimo do livro a ser erguido, o marcador a criar ondas nas páginas, as cócegas que os meus dedos fazem na nuca dessa gente toda.

Quando por qualquer razão, tenho que pousar o livro a meio de uma cena, fico angustiada, como se aquelas pessoas tivessem ficado encravadas no momento, reféns de uma pausa, sustidas, com os membros em cãibras e as falas por cumprir.

E quando termino, aplaco-o contra o peito e fico sem jeito, como se me pedissem para dizer umas palavrinhas num funeral.

Apetece-me sair dali e ao mesmo tempo fechar-me dentro da história.

Sinto vergonha na vontade que tenho de começar uma nova aventura. Às vezes, para não me ver, escondo-o debaixo dos escombros das minhas outras leituras, para ser mais fácil para mim, recomeçar.

Os livros deram me muito mais do que algum dia conseguirei devolver. Instruíram-me, nutriram-me, deram-me tantos amigos, permitiram-me ter novas famílias e deram-me palavras, numa musicalidade tão própria que criei para cada livro a sua própria sinfonia.

Livremo-nos de alguma vez nos tirarem os livros. É a única forma honesta de devolver a fotosintese ao papel e a forma mais bonita que conheço de pentear a nossa língua e sublinhar no nosso mapa emocional todas as portas de saída.